terça-feira, 23 de setembro de 2014

Justiça quer despejar 170 indígenas Kaingang de área no Paraná

  • Procurador da AGU considera reintegração ilegal. Aldeia existe há mais de 18 anos e território foi declarado, em 2007, pelo Ministério da Justiça como de ocupação tradicional indígena

  • Por Carolina Fasolo, Assessoria de Comunicação - Cimi

    Famílias Kaingang de uma aldeia da Terra Indígena Boa Vista, próxima ao município de Laranjeiras do Sul, no Estado do Paraná, podem ser despejadas da área de dois hectares que ocupam há mais de 18 anos, por conta de uma decisão da Justiça Federal em Guarapuava, que determinou o cumprimento de ordem de reintegração de posse contra a comunidade.

    Na aldeia, existe um posto de saúde, a Escola Estadual Indígena Kogmu José Olibio, reservatório de água e rede elétrica. "A escola atende a 60 alunos, até o 9º ano. Na saúde, tem uma enfermeira da Sesai (Secretaria Estadual de Saúde), dois agentes que visitam as famílias, um técnico de enfermagem, um carro oficial e dois motoristas. É tudo provisório, mas aqui é nossa terra, tem investimento até do governo, não podem mandar a gente embora”, diz Claudio Rufino, vice-cacique da aldeia.

    "A meu ver, essa reintegração é ilegal”, ressalta o procurador federal da Advocacia Geral da União (AGU) em Guarapuava, Carlos Alexandre Andriola. "Os indígenas não podem sair de uma área já declarada pelo Ministério da Justiça como de ocupação tradicional. Essa propriedade é que está dentro da TI Boa Vista”.

    A propriedade em questão tem 140 hectares, dos quais apenas dois ocupados pelos indígenas. A fazenda fica no coração da TI Boa Vista, identificada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 2004 e declarada com 7.344 hectares em 2007, como de posse permanente dos indígenas, por meio da Portaria nº 1794, de 29 de outubroassinada pelo então ministro da Justiça, Tarso Genro.

    No entanto, de acordo com a Funai, o procedimento demarcatório está paralisado desde então e o decreto de homologação não foi expedido pela Presidência porque foram interpostas cerca de 24 ações contrárias à demarcação, a maioria já julgada improcedente. O Mandado de Segurança 28.667, por exemplo, impetrado no Supremo Tribunal Federal para anular a demarcação, foi indeferido, em 2010, pelo ministro Marco Aurélio Melo. Uma Apelação Cível buscando a nulidade da Portaria Declaratória também foi negada pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

    A Funai deu continuidade ao procedimento e os pequenos proprietários que ocupavam áreas dentro da TI começaram a ser indenizados e reassentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ainda em 2013. "A Funai está pagando indenizações e as benfeitorias para os agricultores de boa fé. Só no ano passado, oito famílias foram reassentadas pelo Incra. Na última semana, outras duas receberam os pagamentos e novos lotes”, explica Sebastião Aparecido Fernandes, sertanista da Funai e um dos responsáveis pelas negociações de indenização.

    Os indígenas da aldeia, que é objeto da decisão, correm o risco de serem despejados nas próximas semanas. "Com 45 anos de Funai, nunca tinha visto uma coisa dessas! Conceder uma liminar para despejar os índios de um lugar onde estão vivendo há tanto tempo, em uma área que, inclusive, já foi demarcada por profissional competente! É um absurdo”, completa Sebastião.

    O recurso da Funai foi negado pela Justiça de Guarapuava, mas a decisão de reintegração de posse encontra-se suspensa, aguardando manifestação da parte autora da ação contra os indígenas.

    Histórico


    A ocupação da TI Boa Vista é imemorial para os Kaingang. Eles foram expulsos de suas terras entre 1950 e 1962, quando, em parceria com o governo estadual, as Companhias de Colonização e os processos de grilagem - intensificados na gestão do governador Moisés Lupion* (1947-1951), provocaram o fim das aldeias na região.

    "No ano de 1969 foram retirados os últimos indígenas que lá habitavam, mas conseguiram voltar em 1996. Hoje, cerca de 170 indígenas vivem naquela aldeia”, conta o procurador Andriola. "A Justiça toda sabe que aqui é do índio, mas muitos usam essa questão política para não entregarem de vez nossa terra. Hoje, os agricultores dizem que, sem a homologação, ainda têm como tirar os índios daqui”, preocupa-se o vice-cacique Claudio Rufino.

    Ele conta que as ameaças aumentaram depois da ordem de reintegração. "Sábado à noite [30 de agosto], quando um índio voltava pra aldeia, três rapazes num carro Monza chegaram perto e disseram ‘Se vocês passarem pela nossa fazenda nós vamos pegar todo mundo na bala’. A gente pede a homologação há sete anos, estamos no que é nosso por direito, mas parece que a Justiça e os órgãos do governo estão esperando a gente morrer pra tomarem providências”.

    *Moisés Lupion é avô de Abelardo Lupion, deputado federal pelo DEM [Partido Democratas] do Paraná por seis mandatos consecutivos e fundador da União Democrática Ruralista, grupo de direita reacionária que luta contra a aprovação, no Congresso Nacional, de projetos de lei a favor da reforma agrária e dos direitos indígenas.
    (Fonte: CIMI)
    ASCOM ARPIN SUL - ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DA REGIÃO SUL